Heranças do Agora

FEMA Gallery – Cascais, 2024
Curada por Katia Canton

Em sua palestra de 2009, no TED, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie alertava sobre os perigos de se acessar uma história única. Ali ela falava de quanto somos vulneráveis diante de uma forma específica, inevitavelmente, a forma colonizadora, que se impõe ao colonizado, de contar e contruir a história.

Hoje, com crises que se alastram pelas questões políticas, econômicas e sócio-ambientais que atravessam o mundo, as atenções se voltam para uma revisão dessas narrativas coloniais, buscando possibilidades de outros discursos, outras construções de mundo e, novas formas de contar as múltiplas histórias da arte e da civilização humana.

Em seu livro, Após o Fim da Arte—Arte Contemporânea e os Limites da História (1) o filósofo estadunidense Arthur Danto discute justamente a substituição de um modo de legitimação da história da arte, obediente a uma lógica moderna ocidental, construída pelo homem cis, branco, europeu, para uma arte pós-histórica, onde múltiplas narrativas coexistem.

Ao invés de um modo de contar cronológico, marcados pelos movimentos e ismos, que até então compuseram uma história que parecia fazer sentido para alguns, o momento contemporâneo nos alerta para aqueles que foram consistentemente excluídos e que, nem por isso, constituem uma forma de excessão. Pelo contrário. Obras de mulhers, povos indígenas e africanos e pessoas queer e trans constituem um enorme contingente de criação, que agora começamos a rever e nos encantar.

Para sua inauguração, a galeria FEMA escolheu expor obras de povos originários, atestando para a importância dessa produção que está na herança de tudo aquilo que somos hoje.

Essa produção hoje se instaura na berlinda com uma forma, ou várias formas, de contar a história onde imperam coletividades que sempre produziram e cuja obra sustentou toda uma civilização.

É importante pensar que o conceito de originário refere-se àquilo que contém uma ancestralidade e que existe anteriormente às formas de colonização. Pois, as obras expostas na exposição -- a arte originária dos povos indígenas brasileiros, dos povos aborígenes australianos, assim como a arte escultórica do povo Maasai, que ficam no Quênia e norte da Tanzânia, do povo Biombo, no Congo, do povo Asmat, na Papua Nova Guiné e a produção dos povos Sámi, também chamados de lapões, na Escandinávia -- formam uma constelação que nos faz pensar no próprio sentido da existência da arte. Com esse pequeno mas significativo conjunto de obras, constrói-se um pensamento sobre o significado de arte, de estética, e de história.

Do Brasil, temos obras de Aislan Pankararu, Kaya Agari e Elisclésio da Silva. Nascido em Petrolina, Pernambuco, Aislan Pankararu viveu em Brasília, onde formou-se em medicina, e em 2019 passou a se dedicar ao desenho e à pintura, consagrando-se como artista autodidata. Sua obra, pinturas sobre tela e desenhos sobre papel kraft, baseiam-se nos motivos dos desenhos corporais do povo Pankararu. Suas construções abstratas parecem ter movimento.

Kaya Agari, nascida em Cuiabá, Mato Grosso, trabalha com grafismos inspirados na cultura do seu povo Kurâ Bakairi, que habitam terras localizadas nos municípios de Paranatinga e Nobres. Trata-se de uma artista ativista, voltada à luta pelos direitos indígenas.

Elisclésio da Silva, artista do povo Macuxi, é dono de um traço onírico, figurativo, em que uma imagem se sobrepõe ou se justapõe a outras, formando camadas de desenhos coloridos, sobre fundo preto. Três telas e dois desenhos do artista deixam transparecer sua maneira de pensamento em camadas, em que os seres, as plantas, os animais e a natureza como um todo se fundem, como se fossem parte de um mesmo organismo, e se separam concomitantemente, de modo extremamente poético.

Interessante pensar como as cores e pontilhismos na obra do brasileiro quase que se dissolvem e se movem em direção às três telas aborígenes.

Os aborígenes australianos usam uma linguagem visual complexa e simbólica em suas pinturas, que são conhecidas como arte rupestre ou arte do ponto. Os desenhos, compostos por pontos, linhas, formas geométricas, possuem significados específicos e podem variar de acordo com a região e a autoria. Grande parte das obras fala de uma conexão com a terra, assim como com a espiritualidade e as mitologias de seu povo. As telas aqui são de autoria feminina, feitas por Cindy Wallace Nungurrayi e Glenys Gibson Nungurrayi.

Na sala menor, à esquerda, um conjunto de obras do artista Sámi, Tomas Colbengtson marca a presença da arte indígena escandinava. Colbengtson, artista que esteve presente no pavihão da Suécia, na Bienal de Veneza de 2022, é um artista de denúncia.

Diferentemente da maioria das outras apresentadas, marcadas por uma forte manualidade, a obra de Colbengtson tem um cunho conceitual evidente. Ele usa placas de policarbonato, serigrafias e pinta sobre as imagens frases ligadas às ideias que se tem sobre o que é pertencer à comunidades originárias.

Entre as obras tridimensionais, um objeto da Papua Nova Guiné dialoga com uma dupla de esculturas africanas do povo Maasai e uma bela máscara de madeira escura, cuja parte interna, alaranjada, tem essa coloração graças ao pó de tukula, uma árvore conhecida como o sândalo africano.

Para além de obras de arte, essa exposição alude a um acervo humano que nos remete ao que há de mais verdadeiro na ideia de uma necessidade de criar para viver. E nos faz pensar na história, não como linha reta, mas como um rizoma, um complexo universo de fios entrelaçados, e que não param de passar.

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(1) São Paulo: Edusp, 2006.
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*Katia Canton é curadora, escritora, artista e psicanalista. É PhD em Artes Interdisciplinares pela New York University, livre-docente em Teoria e Crítica de Arte e Professora associada em Estética e História da Arte na Universidade de São Paulo.

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