Sombras da Identidade
FEMA Gallery – Cascais, 2024
Por Joana Tubal
Curadoria e Texto: Bernardo Jose de Souza
FEMA Gallery – Cascais, 2024
Por Joana Tubal
Curadoria e Texto: Bernardo Jose de Souza
Parte daquilo que chamamos tradição é resultado de construções culturais relativamente recentes, muitas delas forjadas há não muito mais que duzentos anos, justamente durante um período em que o mundo atravessava grandes transformações sociais, em parte devido ao Iluminismo, em parte à Revolução Industrial. A ideia de tradição viria, portanto, impor-se como freio às mudanças que afetavam não apenas o plano espiritual e filosófico, mas também ao político e econômico. O Kilt trajado pelos escoceses é um bom exemplo disso, bem como a diversidade de tartans a eles atribuídos, os quais, em princípio, remeteriam a clãs específicos. Sabemos hoje, entretanto, tratar-se de uma criação recente, do século 18, em realidade uma estratégia para tornar os trajes usados nas Highlands convenientes aos operários nas fábricas .
No plano social expandido, entretanto, as vestimentas tradicionais funcionam como elemento visual capaz de comunicar uma diversidade de possíveis aspectos político-culturais: seja a distinção entre classes sociais, entre funções diversas na hierarquia da vida social e do trabalho, além de, obviamente, a diferenciação de gênero. Como uma espécie de reação ao processo de globalização, a manutenção das tradições (do Latim tradere, que significa transmitir) tem a função de consolidar hábitos e costumes num mundo em permanente estado de reinvenção. Enquanto a indumentária masculina se manteve relativamente estável ao longo do tempo —em larga medida como uma simplificação da indumentária militar para o convívio social—, a feminina, em contraposição, passaria por constantes mudanças durante a modernidade, em decorrência muito especialmente da moda, vetor de consumo e bússola das transformações culturais.
A artista portuguesa Joana Tubal, em sua presente mostra na galeria FEMA, vai debruçar-se sobre a indumentária feminina de diversas culturas para desenvolver obras pictóricas que nos confrontam com a sofisticação formal de peças de vestuário cujos signos visuais estão impregnados de códigos socioculturais. Suas pinturas, neste sentido, são reveladoras das liturgias, costumes e tradições de um mundo refratário às mudanças sociais experimentadas ao largo dos processos de globalização. Embora quase todas as vestes por ela retratadas datem de registros fotográficos do século 20, temos a impressão de estar diante de mulheres de tempos longínquos, de todo apartadas dos movimentos de emancipação feminista que bem caracterizaram os últimos cento e cinquenta anos. Tome-se, por exemplo, o traje vestido pelas mulheres dos Açores, descritas pelo escritor Raul Brandão, em 1926, como “um fantasma negro e disforme”. Ao que tudo indica, segundo um artigo de Ana Maia, tais peças de vestuário —um capuz e um capote— datam do século XVI, época em que Flandres parcialmente colonizou o arquipélago, embora haja quem diga que sejam do século XVIII, como uma adaptação dos mantos e capuchos que haviam se tornado moda àquela época. Ou, ainda, segundo o Museu da Baleação de New Bedford, os trajes teriam o propósito de proteger as mulheres locais do olhar dos marinheiros.
Todavia, o que resta evidente na coleção de imagens desta exposição é o potencial semântico, discursivo e semiológico investido nas roupas trajadas pelas figuras pintadas por Joana Tubal. Sobretudo derivadas de uma alta carga fundamentalista —e aqui não me refiro exclusivamente ao fundamentalismo religioso, mas a todas suas formas e manifestações—, tais vestes tem o condão de borrar a individualidade, ou mesmo a identidade de quem as porta, algo que a artista vai levar ao paroxismo quando destituiu suas figuras femininas de semblantes próprios ou particulares. Tal qual a descrição de Brandão, as personagens retratadas mais parecem “fantasmas” ou mesmo “monstruosidades”, para usar as palavras do escritor português.
Ao destituir as mulheres de feições, as figuras adquirem um aspecto fantasmagórico, quase inumano, algo que se vê reforçado a partir da simplificação de formas pintadas por Joana. Ao realizar uma espécie de geometrização cromática das figuras e seus trajes, a artista reforça tanto o caráter essencialmente formal das roupas, quanto sua capacidade de ocultar os corpos das mulheres que as vestem —no limite, o vestuário constrói novas formas para a figura feminina. Interessante, aqui, destacar a personagem nipônica vestida como gueixa numa das telas, uma vez que a indumentária oriental, especialmente a japonesa, caracteriza-se por dotar o corpo humano de formas que se descolam da anatomia, coisa que em geral não ocorre no Ocidente.
Igualmente vale lembrar a tradição pictórica da península Ibérica, traduzida na obra de artistas como Zurbarán e Velázquez, cujo pendor por retratar indumentárias aristocráticas e eclesiásticas ganha expressão em pinturas marcadas por peculiares formas e volumes. Tais obras, já no século XX, inspirariam criadores de moda, em especial o basco Cristóbal Balenciaga, que dedicou diversas de suas coleções à construção de vestidos que reproduziam algumas das formas idiossincráticas das vestimentas monásticas.
No texto O Hábito Faz o Monge, de Humberto Eco, o escritor e semiólogo diz que “Os instrumentos de comunicação são equivalentes a uma série de funções que se interpõe no plano da modificação física dos eventos, ao passo que os instrumentos destinados a executar funções e, portanto, destinados a modificar fisicamente as coisas, se impõem ao universo da comunicação e se tornam atos de comunicação, assim como um tipo específico de chapéu chamado mitra é usado não tanto para proteger da chuva, mas para dizer: ‘Eu sou um bispo’.”
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